Implante cerebral devolve fala expressiva a homem com ELA; neuroprótese decodifica atividade neural e abre novos caminhos

Implante cerebral devolve fala expressiva a homem com ELA
Nesta imagem real a pesquisadora Carrina Iacobacci conecta o implante do participante ao computador para a realização dos testes. Dispositivo representa nova era de tecnologias em desenvolvimento que leem a atividade cerebral e permitem transformar pensamentos em sons audíveis. Crédito da foto: University of California

Solução experimental transforma sinais do cérebro em linguagem oral com ritmo, emoção e espontaneidade. Participante recupera conexão com o mundo ao redor e relata alegria de ouvir a sua voz.


Antes iria parecer ficção, hoje é realidade: um homem de 45 anos, diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA), havia perdido a capacidade de falar de forma inteligível. A doença afeta o sistema nervoso de forma degenerativa e progressiva, e leva à paralisia motora irreversível. 

Graças a um implante cerebral conectado a um decodificador de voz, esse homem, que vive no estado da Califórnia, nos Estados Unidos, já pode se comunicar com frases completas, entonação e já dá passos firmes em direção a uma personalidade vocal. E quase instantaneamente.

Além de falar, o paciente também cantou melodias simples, modulou a velocidade e a expressividade da fala, e ouviu a própria voz sintetizada, semelhante à sua anterior. O resultado foi ainda melhor do que o esperado.

Essa neuroprótese interpreta os sinais cerebrais emitidos quando o paciente pensa em falar e converte esses sinais em som audível. E tudo isso com um atraso inferior a 10 milissegundos. Ou seja, o correspondente a 10-3 segundos ou um milésimo de segundo. Para se ter uma ideia desse tempo, um piscar de olhos dura em média de 100 a 400 milissegundos. Ou seja, piscar os olhos é bem mais lento: entre 100 a 400 vezes menos.  

Em março de 2025, o nosso blog falou de uma outra pesquisa com neuroprótese voltada para a sintetização da fala, realizada também na Universidade da Califórnia. Nesse estudo anterior a tecnologia usada pela voluntária Ann Johnson, já processava os sinais muito rapidamente: a 80 milissegundos (mS), ou seja 80 milionésimos de 1 segundo. O implante atual é 8 vezes mais rápido: menos de 10 milissegundos.

Implante neural que fala, canta e emociona

O estudo é assinado por Maitreyee Wairagkar, Sergey Stavisky, David M. Brandman e outros pesquisadores da Universidade da Califórnia em Davis, nos Estados Unidos. Eles implantaram 256 microeletrodos no giro pré-central do cérebro do paciente, ou seja, na região do cérebro que é responsável pelo controle da fala.

Durante o experimento, o voluntário se dispunha a falar frases apresentadas em uma tela. A atividade neural era registrada e, em fração de segundos, convertida em voz. Isso permitiu ao paciente dizer frases inéditas, usar interjeições, soletrar palavras e cantar pequenas melodias com três tons distintos.

O sistema também foi capaz de reconhecer a intenção de fazer uma pergunta (alterando o tom no fim da frase) e de enfatizar determinadas palavras, elementos que compõem a prosódia. 

O paciente contou que ouvir a voz sintetizada, parecida com a sua, o fez “se sentir feliz” e recuperar sua voz de verdade. É necessário dizer que para esses pacientes recuperar a própria voz vai além do físico: é reconquistar a identidade e autonomia nas relações sociais, familiares e profissionais.

Segundo reportagem de Miryam Naddaf, publicada na seção News da revista Nature, em 1º de junho de 2025, esse sistema representa um avanço inédito. Ele permite que a fala decodificada tenha inflexões naturais de entonação, ênfases e até musicalidade. Para especialistas consultados por Naddaf, trata-se do “santo graal” das interfaces cérebro-computador (BCIs) de fala.

Os autores esclarecem que a tecnologia pode, sim, beneficiar pessoas com diferentes causas de perda da fala, desde que o córtex motor da fala esteja funcional. Apesar do limite, ela tem potencial para restaurar a comunicação de milhões de pessoas que perderam a fala por AVC, traumatismos cranianos, paralisia cerebral ou doenças neuromusculares. 

Por que (mais) este estudo importa

Uma ponte para outras condições neurológicas

Antes, a maioria das interfaces cérebro-computador era capaz somente de transformar sinais cerebrais em texto. Isso ajuda, mas não basta. O novo sistema vai além: ele devolve a fala com ritmo, emoção e identidade.

Além disso, a decodificação ocorre em tempo real, sem precisar de um vocabulário fixo, permitindo que o paciente se expresse livremente. Essa espontaneidade é crucial para uma comunicação natural.

O sistema que transforma os sinais do cérebro em fala funciona bem mesmo quando tem barulho no ambiente, tipo tosse do paciente ou outras pessoas falando perto. Ele não “se perde” ou confunde esses sons com o que o paciente realmente quer falar.

Ou seja, ele é resistente a interferências sonoras externas, o que é essencial para garantir que a comunicação seja clara e confiável, mesmo em ambientes com ruído.

Treinar a voz de quem não tinha mais esperanças…

Para treinar o sistema, os cientistas enfrentaram um desafio. O paciente não conseguia falar claramente. Por isso, eles criaram um algoritmo que gerou um “falso alvo” de fala baseado nos textos apresentados na tela. Assim, alinharam os sinais cerebrais com os sons esperados.

Ao decodificar diretamente os sinais cerebrais que indicam a intenção de falar, essa tecnologia elimina a necessidade de movimento físico ou vocalização. Isso a torna especialmente promissora para pacientes com paralisia severa, incapazes de se comunicar por texto, toques ou rastreamento ocular.

Diferentemente dos sistemas baseados em vocabulário fixo, a abordagem deste estudo permite falar com liberdade, criar palavras, usar interjeições e variar o tom para expressar emoções — tudo em tempo real. Essa espontaneidade é essencial para restaurar não apenas a comunicação, mas a dignidade e a presença social de quem ficou silenciado pela doença.

O que os cientistas esperam alcançar a seguir

O estudo envolveu um único participante, que ainda podia vocalizar, embora de forma ininteligível. Os próximos passos incluem testar a tecnologia em outros pacientes, inclusive com paralisia completa.

O sistema ainda não gera fala perfeitamente inteligível em todos os casos. Porém, os avanços indicam que, com mais eletrodos e melhorias nos algoritmos, a neuroprótese pode se tornar uma alternativa viável para milhões que perderam a voz.

Além disso, os autores pretendem investigar o uso da fala imaginada, para pacientes que não conseguem mais mover os músculos da face ou vocalizar.

NeuroTec-R e a neurotecnologia responsável

A personalização das neurotecnologias é, claramente, um ponto de pesquisa importante para o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Neurotecnologia Responsável (NeuroTec-R). Nesse estudo, ao permitir que o paciente recupere a identidade vocal e participe ativamente do desenvolvimento da tecnologia, os cientistas mostram os benefícios de um modelo de inovação centrado na pessoa.

Explore mais sobre neurotecnologia e pesquisa responsável no site do NeuroTec-R.

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Leia o artigo original

An instantaneous voice-synthesis neuroprosthesis
Maitreyee Wairagkar, Nicholas S. Card, Tyler Singer-Clark, Xianda Hou, Carrina Iacobacci, Lee M. Miller, Leigh R. Hochberg, David M. Brandman e Sergey D. Stavisky
Nature – Volume 631, p.1-8, 2 de julho de 2025

Leia também o Research Briefing:

Brain implant decodes neural activity to produce expressive speech
Maitreyee Wairagkar e Sergey D. Stavisky
Nature, publicado online em 2 de julho de 2025

Leia a reportagem da seção News da Nature:

World first: brain implant lets man speak with expression — and sing
Miryam Naddaf
Nature, seção News, 1º de junho de 2025

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Marcus Vinicius dos Santosjornalista CTMM Medicina UFMG