Análise de milhares de trajetórias em ciência, esportes, música e xadrez mostra que o conceito de “jovem promissor” diz pouco sobre o grau de excelência que uma pessoa pode alcançar no transcorrer da vida e expõe falhas em sistemas de seleção e formação
Todo fim de ano convida a um novo recomeço. Quando a gente se dá conta, novas resoluções entram em pauta. E aí a gente se propõe a fazer academia, um novo curso, focar na carreira, fugir das distrações…, e a lista pode ser longa. Usando ora um processo mais intuitivo, ora um mais detido, muita gente planeja os próximos passos considerando que o sucesso depende, acima de tudo, de rapidez no alcance dessas tantas metas.
Quando o objetivo envolve trajetórias profissionais de alto desempenho, vários estudos mostram que é melhor dar um passo de cada vez, como diria minha avó, e cuidadosamente. Identidade profissional e vocacional é um processo gradual, que se desenvolve ao longo de vários anos de formação e prática, inclusive em profissões altamente estruturadas.
É necessário um tempo para o amadurecimento. Coisas como se organizar para ser capaz de valorizar a aprendizagem sustentada, ter margem para experimentação, fazer avaliações de longo prazo. Em vez de perguntar “como posso avançar mais rápido?”, faz mais sentido perguntar “o que preciso aprender melhor agora para avançar mais longe depois?”
Estas são algumas das conclusões apresentadas em um estudo publicado na revista Science, na semana passada. Cientistas da Alemanha, Áustria e Estados Unidos analisaram como se desenvolvem pessoas que atingiram níveis máximos de desempenho em áreas muito diferentes, como ciência, esportes, música clássica e xadrez. Pesquisadores encontraram padrões surpreendentemente semelhantes.
Quem foi estudado, e por que isso importa
Liderado pelo professor Arne Güllich, do Departamento de Ciências do Esporte, da Universidade Técnica de Kaiserslautern, na Alemanha, e seus colaboradores, o estudo examinou trajetórias de mais de 34 mil pessoas que chegaram ao topo absoluto de suas áreas.
Um grande diferencial desse estudo é que, em vez de observar estudantes, jovens promessas ou iniciantes, os autores focaram apenas em profissionais de alta performance já consagrados. Os autores chamam atenção para o fato de que normalmente é isso que as pesquisas sobre talento e desempenho fazem. “O problema é que extrapolar esses dados costuma levar a conclusões erradas sobre excelência máxima”, esclarecem, no texto.
A partir dessa nova forma de analisar os dados, os pesquisadores formularam duas perguntas diretas: quem se destaca cedo é quem chega mais longe? E, os fatores que explicam sucesso inicial também explicam desempenho máximo mais tarde? Neste estudo a resposta segue um padrão que se repete.
Mesmo em áreas diferentes
A resposta curta é não, às duas perguntas. De forma consistente, o resultado mostra que os melhores no início raramente são os melhores no topo da carreira. Em alguns domínios analisados, cerca de 90% dos nomes mudam quando se compara quem se destaca cedo com quem atinge o pico de desempenho na vida adulta.
Isso não quer dizer que talento precoce não exista. Ele existe e importa. No entanto, ele captura apenas um momento específico da trajetória. Avaliações rápidas tendem a registrar quem performa bem agora, mas deixam de fora processos mais lentos, como adaptação, aprendizagem acumulada e ajustes sucessivos de rota.
Quando os pesquisadores compararam os campeões em nível mundial com seus pares que ficaram logo abaixo, as diferenças ficaram mais claras. Em média, os melhores do mundo avançaram mais devagar no início, exploraram mais de uma área antes de se especializar, intensificaram o foco mais tarde e sustentaram carreiras mais longas.
Já os quase tão bons quanto eles, embora muito competentes, tendem a se especializar cedo e a concentrar esforços rapidamente. Assim, a distinção central de suas performances não parece estar apenas na dedicação ou no esforço bruto, mas na forma como tempo, prática e aprendizagem foram distribuídos ao longo da vida.
Ciência, esporte, música e xadrez: o que têm em comum
À primeira vista, essas quatro áreas parecem incomparáveis. No entanto, os autores do estudo observaram características compartilhadas no âmbito da capacitação técnica e profissional. Todas exigem aprendizagem cumulativa, dependem de feedback tardio, muitas vezes só visível anos depois, e operam dentro de sistemas institucionais que precisam selecionar pessoas antes de saber quem realmente vai se destacar.
Por isso, erros de avaliação no início têm efeitos duradouros. Quando as instituições confundem desempenho precoce com potencial de longo prazo, elas não apenas erram previsões, como também moldam trajetórias. Incentivos mal desenhados empurram jovens para especialização prematura, reduzem a diversidade de experiências e aumentam o risco de desgaste, abandono ou estagnação.
Explorar cedo não é atraso
Os autores não afirmam que os melhores de cada área planejaram conscientemente seus caminhos. Ainda assim, como o padrão se repete em domínios tão distintos, o resultado ganha força.
E aí surge um dos achados mais consistentes do estudo, que é o papel da exploração inicial. Explorar não significa perder tempo, mas reduzir riscos e ampliar repertório antes de apostar tudo em uma única direção.
Em vez de indicar indecisão, essa experimentação está associada a uma melhor adaptação. E isso é especialmente importante quando chega ao ponto em que o funil se estreita e a competição fica mais acirrada. Nessa etapa as escolhas passam a ser mais reduzidas e há necessidade de uma maior capacidade de aprender, ainda mais.
Implicações para instituições e políticas públicas
Mas o que isso significa na prática? Esses resultados levantam um alerta para os programas de formação, sistemas de seleção e políticas de financiamento. Bolsas, conservatórios, academias e programas de elite costumam priorizar quem performa melhor mais cedo. Segundo o estudo, essa estratégia captura apenas uma fração dos futuros performers excepcionais.
Além disso, quando avaliações institucionais se baseiam em resultados imediatos, elas criam incentivos para acelerar cedo demais. Em contraste, trajetórias sustentáveis exigem critérios que acompanhem o desenvolvimento ao longo do tempo, inclusive até o pico de desempenho.
A evidência sugere que identificar potencial de longo prazo exige ir além do “melhor agora”. Desempenho acima da média, prática específica moderada e experiência multidisciplinar consistente aparecem como sinais mais confiáveis de excelência futura do que resultados extremos precoces.
Um ajuste de expectativa, não uma promessa
Então, voltando às resoluções de ano novo, é bom saber que elas ajudam a organizar o próximo passo. No entanto, quando se trata de desenvolvimento profundo, elas capturam apenas uma parte do caminho. Trajetórias excepcionais raramente cabem em ciclos curtos, métricas rápidas ou decisões irreversíveis tomadas cedo demais.
Acelerar cedo não prevê excelência futura. Logo, critérios de seleção, avaliação e investimento baseados apenas em desempenho imediato precisam ser revistos. Fazer o contrário pode excluir, justamente, quem poderia chegar mais longe. É imprescindível dar espaço para exploração, reflexão e feedback para se alcançar a verdadeira identidade profissional de um jovem.
Um outro ponto, não abordado neste artigo, que explica essa história toda é que, de acordo com os estudos da neurociência, o cérebro permanece em desenvolvimento “adolescente” até o início dos 30 anos. Isso significa que capacidades centrais para a vida profissional (planejamento, julgamento, regulação emocional) ainda estão amadurecendo na faixa em que muitas políticas tentam antecipar decisões e responsabilidades definitivas.
Este estudo, portanto, dialoga com a missão do NeuroTec-R ao reforçar que decisões baseadas em sinais precoces, inclusive neurocognitivos, devem ser interpretadas com cautela. Trajetórias humanas complexas não se deixam reduzir a métricas rápidas, e inovação responsável exige considerar o tempo, a diversidade de experiências e os limites da previsão tecnológica.
[Leia o artigo original]
Recent discoveries on the acquisition of the highest levels of human performance
Arne Güllich, Michael Barth, David Z. Hambrick e Brooke N. Macnamara
Science, Review/Analysis. 18 de dezembro de 2025.
Complementares
Cornerstones of professional identity formation: Developing a language to express requirements, provide feedback, and establish standards in medical education
Kågedal, K. (29 ago. 2025). New wave. Medical Teacher.
What’s Your Vocation? A Meta-Analysis of Interventions Tackling Youth Educational and Professional Identity
Crocetti, E., et al. (2 abr. 2025). Review article. An International Journal of Theory and Research.
Topological turning points across the human lifespan
Mousley, A., et al. (25 nov. 2025). Article. Nature Communications.
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Texto: Marcus Vinicius dos Santos – jornalista CTMM Medicina UFMG