Cérebro deve ser estudado “de cima pra baixo” e “de baixo pra cima”; colaborações entre “rivais” podem trazer respostas mais sólidas e relevantes

Cérebro deve ser estudado “de cima pra baixo” e “de baixo pra cima”
Pode ser a partir de lesmas marinhas em laboratórios altamente controlados, ou por meio de modelos que simulam o cérebro inteiro com base em mapas de receptores. Saber unir esses extremos pode fortalecer a neurociência, alertam neurocientistas - Imagem gerada por IA, meramente ilustrativa

Visando descobertas mais sólidas e relevantes no campo da neurociência, um grupo de pesquisadores internacionais defende mudança estratégica combinada.


Existem neurocientistas que estudam o cérebro a partir de perguntas amplas, como o que é consciência, por exemplo. Já outros, preferem montar o quebra-cabeça neurônio por neurônio, na intenção de manter o controle total do experimento.

No meio científico, esses dois modelos de pesquisa são conhecidos como top-down (“de cima para baixo”) e bottom-up (“de baixo para cima”). Em outras palavras, o primeiro grupo mira no todo e tenta explicá-lo com modelos conceituais amplos. Da mesma forma, o segundo começa pelas partes, avança com rigor e só depois tenta generalizar.

Um artigo internacional, “Top-down and bottom-up neuroscience: overcoming the clash of research cultures”, publicado este mês na seção de Comentários da revista Nature Reviews Neuroscience, analisa essa cultura científica e propõe uma conciliação entre as partes como forma de aperfeiçoar a relevância das respostas obtidas.

O texto é assinado pelo filósofo, músico, matemático e doutor em Ciências da Engenharia Fernando Rosas, pelo filósofo e neurocientista Andrea Luppi e seus colegas, de diferentes universidades do Reino Unido, Dinamarca, Canadá e República Tcheca.

Entenda melhor o assunto

Eles consideram que os estudos em neurociência muitas vezes são desencadeados “a partir de uma exposição precoce a questões gerais – por exemplo, como os cérebros dão origem às mentes, ou o que é a consciência”.

E as abordagens usadas para lidar com essas questões gerais tendem a ser resumidas em duas categorias distintas, correspondendo a diferentes “culturas de pesquisa”. Esses modos de fazer ciência “divergem não só em métodos de pesquisa”, como “também em expectativas sobre o que significa progredir”.

Mas, e se esses especialistas encontrassem pontos se sua abordagem que pudessem conciliar dados e complementar a compreensão do fenômeno observados?

Essa nova forma de perceber a “rivalidade” dos métodos teria um poder potencial de contornar o conflito inevitável entre precisão e amplitude que buscam os cientistas.

Em outras palavras, seria muito positivo se os neurocientistas desenvolvessem novos métodos que permitam combinar seus resultados para produzir conhecimento mais sólido, útil e testável.

Veja abaixo como essas abordagens podem resultar em evidências mais sólidas.


Top-down vs. Bottom-up: prós e contras das duas abordagens na neurociência
Aspecto Top-down (de cima para baixo) Bottom-up (de baixo para cima)
Ponto de partida Grandes perguntas, como “O que é a consciência?” Pequenos sistemas controláveis, como reflexos ou sinapses
Força principal Atinge diretamente questões amplas e significativas Alta precisão experimental e rigor metodológico
Fragilidade apontada Pode gerar especulações vagas ou saltos lógicos difíceis de testar Risco de simplificar demais e perder o fenômeno original de vista
Exemplo citado no estudo Neurociência de redes e trabalho de Boltzmann Experimentos com a lesma Aplysia no estudo da memória
Crítica dos autores Falta de testabilidade e risco de imprecisão conceitual Pode alterar o foco da pergunta para algo mais fácil, mas menos relevante
Resumo da crítica Mira no alvo, mas com armas pouco afiadas Acerta o que mira, mas talvez esteja mirando o alvo errado

Os autores do artigo alertam para a importância de os neurocientistas adotarem a combinação dos pontos fortes de ambas as abordagens. Segundo eles, são estilos legítimos de fazer ciência do cérebro, muito embora cada um tenha suas limitações. Reconhecer suas fraquezas e pontos fortes pode contribuir no sentido de um maior equilíbrio e de resultados cada vez mais abrangentes e realmente representativos dos mecanismos de funcionamento do cérebro.

Dois jeitos de ver o cérebro

Os autores destacam que o embate entre top-down e bottom-up não é apenas técnico. Reflete visões diferentes sobre o que é “progresso” científico. Uma quer rigor, a outra, impacto. 

Um caso clássico, a saber, é o estudo de Eric Kandel com a lesma Aplysia, que permitiu mapear a memória a partir de estímulos simples. O modelo era controlável, mas também extremamente simplificado. Ambas as abordagens têm força e limite. A primeira é ambiciosa, mas às vezes vaga. A segunda é precisa, mas pode perder o fenômeno real de vista.

Existe aí um antigo embate entre filosofia analítica e filosofia continental. A filosofia analítica, associada ao estilo bottom-up, foca clareza, lógica e estrutura. Já a continental, próxima da top-down, valoriza sentido, subjetividade e contexto.

Essa comparação indica que existe conflito não só metodológico, como também se trata de uma disputa sobre os fundamentos do saber. Eles chamam a atenção para essa perspectiva de revisores, agências de fomento e orientadores: a ciência não avança quando apenas uma dessas visões predomina, afirmam. 

Reconhecer a existência de várias formas válidas de contribuir com a neurociência, ensinar novos métodos e seus limites pode evitar o empobrecimento da formação de novos cientistas.

E a ética nisso tudo?

Embora o artigo não utilize explicitamente os termos “ética” ou “responsabilidade”, seu argumento central carrega um forte componente ético: o reconhecimento de que diferentes formas de fazer ciência — com métodos, prioridades e graus de abstração distintos — merecem respeito e avaliação justa.

Cada cultura contribui com dimensões distintas de progresso científico. Julgá-las sob os mesmos critérios gera conflitos desnecessários, defende o texto. Os autores chamam de erro tentar impor um único modelo de “progresso científico” como critério universal de excelência.

Para eles, essa postura, ainda que comum em avaliações de artigos, bolsas e contratações, desvaloriza abordagens legítimas e empobrece a ciência. Afeta até o tipo de pergunta que ganha espaço na ciência.

Portanto, é uma responsabilidade dos decisores científicos conhecer e reconhecer maneiras diferentes, mas igualmente válidas, de contribuir para o avanço da neurociência.

Como integrar forças opostas?

A principal sugestão prática é usar modelos computacionais como ferramenta de integração. Esse tipo de modelo exige tanto abstração quanto precisão. Obriga cientistas das duas culturas a conversarem, ajustarem hipóteses e testarem juntos.

Exemplos já existem. Um deles simula os efeitos do LSD no cérebro, combinando dados de neuroimagem com mapas de receptores de serotonina. Outro relaciona mecanismos celulares de neuromodulação com grandes padrões cerebrais observados em exames de ressonância.

Modelos são pontos de encontro entre estilos distintos de pensar, compara o texto. Por isso, evidenciam que a colaboração sobre aspectos opostos pode gerar descobertas que nenhum lado alcançaria sozinho.

Impacto real para a sociedade

Essa discussão visa influenciar mudanças na forma de fazer uma ciência mais sintonizada com as necessidades sociais. Isso, por sua vez, influencia quais pesquisas ganham mais verbas, quais perguntas viram políticas públicas e como a ciência é ensinada, por exemplo.

Valorizar a diversidade de métodos, por sua vez, é uma forma de responder melhor às grandes questões da sociedade. Acima de tudo, isso permite que a ciência mantenha o rigor sem perder a ambição — e que o cérebro seja estudado com mais inteligência e menos preconceito.

Conclusão

Artigo publicado na Nature Reviews Neuroscience propõe reconhecer o valor de diferentes modelos de fazer pesquisa em neurociência. Contudo, a proposta envolve superar conflitos e integrar abordagens distintas. E isso vai ao encontro das diretrizes adotadas e defendidas pelo INCT NeuroTec-R.

Em suma, nosso Instituto promove que o melhor para as ciência e a tecnologia é sempre o diálogo aberto com a sociedade, a colaboração científica e a publicação de acesso aberto (Open Science).

[Leia o artigo original]

Top-down and bottom-up neuroscience: overcoming the clash of research cultures
Fernando E. Rosas, Andrea I. Luppi, Pedro A. M. Mediano, Morten L. Kringelbach, Luiz Pessoa & Federico Turkheimer
Nature Reviews Neuroscience. Comment. Publicado online em julho de 2025
DOI: https://doi.org/10.1038/s41583-025-00946-x


Notícia atualizada em 25/7/2025, às 8h

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Texto: Marcus Vinicius dos Santos – jornalista CTMM Medicina UFMG