Privacidade mental pode parecer conceito de ficção científica, mas já virou pauta política. Espanha propõe novo modelo de governança para tecnologias cerebrais como forma de enfrentar desafios éticos e sociais. A Iniciativa destaca não só inclusão, quanto também inovação pública, confiança e direito digital.
A convergência entre neurociência, inteligência artificial e tecnologias digitais ganhou um novo marco com a publicação, em janeiro de 2024. Trata-se do relatório Humanistic neurotechnology: a new opportunity for Spain (ou Neurotecnologia humanística: uma nova oportunidade para a Espanha).
O documento foi produzido pela Digital Future Society, iniciativa apoiada pelo governo da Espanha. Principalmente, ele não só propõe um modelo de desenvolvimento e regulação da neurotecnologia mais humanizada, como também recomenda a adoção de uma estratégia para enfrentar desafios e abrir novos caminhos para lidar com os desafios éticos e sociais que vêm junto com o avanço tecnológico.
No centro da proposta está a chamada neurotecnologia humanista. A saber, ela defende o seguinte: se vamos colocar máquinas para ler ou estimular nosso cérebro, que isso seja feito com responsabilidade. Direitos humanos, inclusão digital e confiança pública não devem ser só notas de rodapé, mas protagonistas nessa história.
Esses princípios estão alinhados com os valores promovidos pelo INCT NeuroTec-R, que atua na produção de conhecimento e diálogo público sobre neurotecnologia responsável no Brasil. O Instituto é sediado no Centro de Tecnologia em Medicina Molecular (CTMM) da Faculdade de Medicina da UFMG.
O cérebro virou prioridade global
É sério: nos últimos 20 anos, o cérebro passou do “status de mistério” para prioridade internacional. Doenças como Alzheimer, AVC e depressão pesam — e muito — tanto na vida das pessoas quanto nos orçamentos dos países. Para responder a isso, surgiram iniciativas como:
- Human Brain Project (União Europeia, 2013)
- BRAIN Initiative (EUA, 2013)
- International Brain Initiative (2017), com Canadá, China, Japão, Austrália e outros
A Espanha também entrou no jogo com o Spain Neurotech e sua Carta de Direitos Digitais, ainda em 2020 (Gobierno de España. Ministerio de Economía, Comercio y Empresa), posicionando-se como um país que pensa a tecnologia com cabeça e coração.
Afinal, o que é neurotecnologia?
Neurotecnologia é, basicamente, qualquer dispositivo que se conecta ao cérebro ou à medula para captar, estimular ou até modular suas atividades. Pode parecer ficção científica, mas já existe — e está evoluindo rápido.
Essas tecnologias podem ser:
- Implantáveis, como eletrodos cirurgicamente inseridos para tratar Parkinson
- Não implantáveis, como capacetes com sensores que monitoram crises de epilepsia
E tem mais: mesmo as “não invasivas” podem influenciar o cérebro de formas profundas. Isso sem falar nos dispositivos “minimamente invasivos”, que estão chegando discretamente à festa.
Três tipos, muitos usos
O relatório agrupa as neurotecnologias em três grandes famílias:
- Neuroimagem – permite visualizar a atividade cerebral, como um scanner de pensamento
- Neuromodulação – altera sinais cerebrais com estímulos elétricos ou magnéticos
- Neuropróteses – criam pontes entre cérebro e dispositivos, como próteses controladas pelo pensamento
Avanços incríveis… mas e os riscos?
E são justamente as aplicações médicas as mais impressionantes. Entre os avanços citados estão dispositivos que permitem a pacientes paralisados controlar computadores ou próteses com o pensamento, além de tecnologias capazes de modular emoções ou treinar o cérebro para melhorar o desempenho.
Já é possível mover um braço robótico com o pensamento, tratar depressão profunda com estimulação cerebral e usar EEG para detectar padrões cerebrais em tempo real. Organizações como Bitbrain e BrainGate estão por trás de parte dessas tecnologias.
No entanto, como diria qualquer avó precavida: “nem tudo que reluz é ouro”. Essas inovações também levantam sérias questões éticas, como o risco de violação da privacidade mental, manipulação do comportamento e aumento das desigualdades sociais.
E é aí que o relatório alerta: “Há um perigo real de que a neurotecnologia amplie divisões sociais ou seja usada para fins comerciais e militares sem garantias adequadas de proteção dos cidadãos”, aponta o relatório. Nesse cenário, o conceito de neurodireito (neurorights) ganha força, propondo novos direitos para proteger a autonomia e a identidade mental das pessoas.
Sim, já existe prótese cerebral. E comunicação de cérebro para cérebro também.
Parece surreal, mas já temos:
- Implantes cocleares, que podem devolver a audição;
- Próteses oculares, que podem restaurar a visão;
- Sistemas como o BrainNet, por meio dos quais três cérebros jogam Tetris juntos, sem digitar uma letra.
Enquanto isso, capacetes com estimulação elétrica vêm sendo testados na reabilitação de AVCs, e sensores vestíveis começam a ligar sinais cerebrais diretamente aos músculos, possibilitando recuperação de movimentos. É tecnologia para ver, ouvir, andar e até conversar sem falar.
E o cidadão, onde entra?
Para que tudo isso funcione de forma justa, o cidadão precisa entender, confiar e participar. O relatório afirma que o empoderamento cidadão passa por ambientes informacionais confiáveis, alfabetização digital e científica e regras claras sobre o uso dos dados do cérebro.
Afinal, se até nossas emoções podem ser monitoradas ou modificadas, é fundamental garantir que isso não seja usado de forma manipulativa ou discriminatória.
Inovação pública com responsabilidade
A proposta espanhola vai além do “deixa como está”: ela sugere governança proativa, misturando leis duras com diretrizes flexíveis. O objetivo? Criar políticas que antecipem problemas e envolvam todos os setores: governo, empresas, pesquisadores e a própria sociedade.
Aqui no Brasil, o INCT NeuroTec-R segue o mesmo caminho. Sediado no Centro de Tecnologia em Medicina Molecular (CTMM) da Faculdade de Medicina da UFMG, o instituto aposta em ciência de ponta, mas sem perder de vista a ética, o diálogo público e a responsabilidade social.
Proteção mental é o novo direito digital
Privacidade mental pode parecer conceito de ficção científica, mas já virou pauta política. O relatório argumenta que neurodados — os dados do nosso cérebro — precisam da mesma proteção legal que dados genéticos. A Espanha, com sua Carta de Direitos Digitais, saiu na frente.
A ideia não é travar o progresso, mas garantir que ele não passe por cima da gente. Inclusão digital, acesso equitativo às tecnologias e métricas claras de acompanhamento fazem parte do pacote.
E o Brasil com isso?
A experiência espanhola serve como espelho. Segundo o relatório, mais do que investir em equipamentos, é hora de criar uma cultura de responsabilidade compartilhada. Isso significa envolver cientistas, governos, empresas e a população na construção de um futuro em que a tecnologia ajude — e não, assuste.
Para quem atua no campo da ciência, da comunicação e das políticas públicas, o momento presente é de enorme relevância para o futuro dessa tecnologia. O debate está lançado e cabe a cada um de nós se informar, refletir e se posicionar sobre , decidir que tipo de convivência queremos entre cérebros, chips e direitos. Enfim, a neurotecnologia humanizada é estratégia para enfrentar desafios.
Leia a publicação original
Digital Future Society. Humanistic Neurotechnology: A New Opportunity for Spain
Barcelona: Mobile World Capital Barcelona Foundation, 2024. 48 p.
Acessado em: 15 abril 2025.
Fale conosco
O que você acha dessa revolução no futuro da comunicação? Conta pra gente! Envie seu comentário para inctneurotecr@gmail.com ou siga-nos nas redes sociais: Instagram @inctneurotecr e LinkedIn INCT NeuroTec-R.
Explore mais sobre neurotecnologia e pesquisa responsável aqui, no site do NeuroTec-R.
Texto: Marcus Vinicius dos Santos – jornalista CTMM Medicina UFMG