O que até pouco tempo era apenas uma suspeita, tornou-se uma evidência robusta. Uma pesquisa desenvolvida no Instituto Karolinska, na Suécia, mostra risco quatro vezes maior de doença de Parkinson de início precoce em pessoas autistas. Foram acompanhados mais de 2 milhões de pessoas, por mais de 30 anos.
Um alerta vindo da Suécia pode mudar o modo como a ciência e a saúde pública enxergam o autismo. Publicado em 27 de maio de 2025, na JAMA Neurology, um estudo liderado pela pesquisadora Weiyao Yin, médica ginecologista e obstetra, com doutorado na área, atualmente no Instituto Karolinska, chamou a atenção da comunidade científica por ser inédito.
O estudo acompanhou 2.278.565 pessoas nascidas na Suécia entre 1974 e 1999. Dentre essas, 51.954 tinham autismo (cerca de 2,3% da amostra). 2.226.611 não tinham autismo. Como os casos de Parkinson antes dos 20 anos são considerados de início juvenil, o estudo iniciou o acompanhamento a partir dessa idade. E seguiu até o ano de 2022. A média de idade ao final do estudo foi de 34 anos. Nesse período os pesquisadores encontraram 438 casos de Parkinson entre os não autistas e 24 casos de Parkinson entre os autistas.
Com base no aprofundamento da análise desses e outros dados coletados, a equipe montou um dos maiores estudos de coorte já realizados. Ou seja, a pesquisa é dirigida a acompanhar um grupo de pessoas ao longo do tempo, com o objetivo de analisar como as características conhecidas como “fatores de risco” influenciam a saúde.
Mesmo após ajustes por sexo, histórico familiar, renda e uso de antidepressivos e antipsicóticos, o risco de Parkinson entre autistas permaneceu elevado. Isso indica que a associação não se resume aos medicamentos ou ao ambiente familiar.
Diante disso, um dos principais resultados do trabalho é ressaltar a necessidade de repensar o acompanhamento de quem tem transtorno do espectro autista (TEA), condição que afeta o desenvolvimento neurológico da pessoa.
Conheça melhor
O autismo, ou transtorno do espectro autista, não é uma doença. Ele afeta o desenvolvimento neurológico da pessoa, impactando cerca de 2% das crianças no mundo. De forte base genética — herdabilidade acima de 80% —, fatores ambientais também contribuem para sua manifestação. Como o autismo acompanha a pessoa ao longo da vida, entender sua relação com doenças da velhice, como a de Parkinson, torna-se fundamental.
Já a doença de Parkinson é neurodegenerativa. Ela atinge cerca de 2% da população e se caracteriza pela perda progressiva de neurônios produtores de dopamina — uma substância que regula o movimento, a motivação e o humor. Essa perda compromete o chamado sistema dopaminérgico, que conecta várias áreas do cérebro e coordena funções motoras e comportamentais.
E a origem pode ser comum: alterações no sistema dopaminérgico — o mesmo envolvido tanto no TEA quanto no Parkinson. Esse sistema é composto por um conjunto de neurônios que produzem e liberam dopamina em diferentes áreas do cérebro. Por sua vez, os suecos relacionam autismo com doença de Parkinson com base em evidências neurológicas compartilhadas.
Este estudo se destaca por ser o primeiro a investigar, de forma longitudinal e em larga escala, se pessoas com autismo têm maior risco de desenvolver Parkinson. A equipe identificou possíveis ligações biológicas entre as duas condições, como falhas no sistema dopaminérgico e alterações no gene PARK2. Esse gene atua na manutenção dos neurônios e, quando sofre mutações — isto é, mudanças no código genético —, pode favorecer o aparecimento do Parkinson precoce, antes dos 50 anos.
Além disso, os pesquisadores analisaram fatores pouco explorados em estudos anteriores, como nascimento prematuro, histórico de depressão e uso de antipsicóticos. Ao utilizar dados clínicos reais acompanhados por décadas, o estudo supera limitações de pesquisas anteriores, que usavam amostras pequenas ou métodos menos rigorosos.
O que exatamente mostram os números
Observado | Com Autismo | Sem Autismo |
---|---|---|
Número de participantes | 51.954 | 2.226.611 |
Casos de Parkinson | 24 | 438 |
Proporção (%) | 0,05% | 0,02% |
Incidência (casos por 100 mil pessoas-ano) | 3,9 | 1,3 |
Risco relativo bruto (sem ajuste) | ≈ 3x maior | – |
Risco relativo ajustado (modelo final) | 4,59 (IC 95%: 3,01–7,01) | 1 (referência) |
Variável | Valor entre autistas |
---|---|
Com diagnóstico de depressão ou uso de antidepressivos | 46,7% |
Com histórico de uso de antipsicóticos | 31,5% |
Fonte: Estudo conduzido por Weiyao Yin e equipe, Universidade Karolinska, Suécia (2025).
Neste estudo foram identificados casos de Parkinson entre mais de dois milhões de indivíduos acompanhados. Os diagnosticados com TEA apresentaram índice de 5,4 em cada 10 mil pessoas. Já entre os que não tinham autismo, o índice ficou em 1,2 por 10 mil.
Foi a partir dessa diferença que se calcula o risco relativo de 4,3 — ou seja, adultos com TEA tiveram mais de quatro vezes a probabilidade de desenvolver Parkinson, no mesmo intervalo de tempo e com os mesmos critérios diagnósticos.
Mesmo entre autistas que nunca usaram antipsicóticos, o risco permaneceu alto. Isso elimina a hipótese de que os medicamentos, sozinhos, expliquem a associação. De novo: os suecos relacionam autismo com doença de Parkinson, e as evidências sugerem causas mais profundas do que o uso de remédios
Qual o impacto disso?
A descoberta desafia a separação histórica entre condições do neurodesenvolvimento, como o autismo, e doenças neurodegenerativas, como o Parkinson. Até então, a maioria dos protocolos clínicos tratava essas duas categorias como distintas — por origem, evolução e faixa etária. A pesquisa sueca indica que essa divisão pode ser artificial.
O estudo mostra que ambas as condições afetam circuitos neurológicos semelhantes, especialmente os dopaminérgicos. Enquanto o autismo se liga a falhas no desenvolvimento desses circuitos, o Parkinson está associado à sua degeneração, especialmente na substância negra, área essencial ao controle motor.
O que ainda não sabemos
Apesar da robustez estatística, o estudo levanta novas questões importantes:
Quais subgrupos dentro do espectro autista são mais vulneráveis?
- Fatores genéticos ou ambientais específicos influenciam essa transição de risco?
- O tipo de suporte na infância e adolescência pode alterar o risco na vida adulta?
- A presença de comorbidades psiquiátricas — como TDAH ou transtorno bipolar — modifica essa associação?
Além disso, como a média de idade dos participantes ainda está abaixo dos 60 anos, o número de casos de Parkinson pode crescer nos próximos anos. Isso reforça a necessidade de continuar acompanhando essa coorte, para que os dados se tornem ainda mais sólidos.
Como aplicar na prática?
A principal recomendação dos autores é clara: o TEA não deve ser tratado como uma condição restrita à infância. O autismo é um diagnóstico vitalício, e os riscos à saúde evoluem com o tempo.
- Incluir exames neurológicos regulares no cuidado de adultos autistas;
- Rever protocolos de prescrição com foco nos efeitos de longo prazo;
- Investir em estudos longitudinais que busquem biomarcadores precoces;
- Planejar políticas de cuidado intersetorial, integrando saúde mental, neurologia e atenção primária.
O que a ciência precisa fazer agora
Esse estudo abre uma agenda promissora. Três áreas devem receber atenção imediata:
- Genética e epigenética: é preciso identificar variantes comuns aos dois diagnósticos;
- Neuroimagem e biomarcadores: tecnologias como PET e fMRI podem mapear alterações cerebrais ao longo do tempo;
- Prevenção e neuroproteção: intervenções precoces — comportamentais, nutricionais ou farmacológicas — podem reduzir o risco em populações vulneráveis.
Mais uma vez, suecos relacionam autismo com doença de Parkinson. E o mundo precisa escutar.
Uma nova lógica de cuidado ao longo da vida
O estudo sueco reforça uma tendência global: migrar do modelo episódico para um modelo contínuo de cuidado em saúde mental e neurológica. Identificar riscos precocemente permite criar intervenções mais eficazes, tanto para o autismo quanto para o Parkinson.
No Brasil, iniciativas voltadas ao envelhecimento da população com TEA ainda são raras. A maioria dos programas foca apenas na infância, desconsiderando a complexidade das transições para a vida adulta e a velhice.
Impacto e aplicações do estudo
O que muda para médicos, famílias e gestores
Se você é pai, mãe, profissional de saúde ou gestor público, preste atenção: pessoas com TEA precisam de acompanhamento contínuo. A ideia de que o autismo é assunto exclusivo da infância já não se sustenta.
No estudo, o risco permaneceu elevado mesmo entre pacientes que nunca usaram antipsicóticos. Isso reforça a hipótese de uma ligação profunda entre as duas condições. Isso não quer dizer que todo autista desenvolverá Parkinson, mas sim que esse grupo exige monitoramento especializado.
Para a ciência, o impacto é significativo. Abre-se um novo campo de pesquisa sobre interações entre distúrbios do neurodesenvolvimento e doenças degenerativas. Para as famílias, a mensagem é direta: informação é prevenção.
Próximos passos e perspectivas
Os autores sugerem que a próxima etapa é acompanhar esses indivíduos até a terceira idade. Afinal, a maioria dos casos de Parkinson surge após os 60 anos, e muitos participantes ainda não atingiram essa faixa.
Além disso, é essencial entender melhor o papel de fatores ambientais e de outros medicamentos. A ligação entre autismo e Parkinson pode levar à descoberta de marcadores biológicos precoces, facilitar o diagnóstico e, talvez, evitar o aparecimento da doença.
Esse tipo de estudo também pressiona os sistemas de saúde a se adaptar. Não é mais possível pensar em autismo sem planejar o cuidado na vida adulta e na velhice.
NeuroTec-R e a pesquisa
O estudo aborda um tema central para o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Neurotecnologia Responsável (NeuroTec-R): a responsabilidade de planejar pesquisas com impacto social. Além de gerar conhecimento, é essencial envolver famílias, profissionais e gestores em estratégias de cuidado a longo prazo. É disso que trata a pesquisa e inovação responsáveis (PIR), um dos pilares do NeuroTec-R. É disso que trata a pesquisa e inovação responsáveis (PIR), um dos pilares do NeuroTec-R.
[Leia o artigo original]
Risk of Parkinson Disease in Individuals With Autism Spectrum Disorder
Weiyao Yin, Abraham Reichenberg, Michal Schnaider Beeri, Stephen Z. Levine, Jonas F. Ludvigsson, Martijn Figee, Sven Sandin
Publicação: JAMA Neurology, 27 de maio de 2025
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Texto: Marcus Vinicius dos Santos – jornalista CTMM Medicina UFMG