Em abril de 2024 um artigo publicado na Nature Neuroscience se propôs a orientar os pesquisadores da área sobre a importância de contextualizar informações sobre raça e etnia em pesquisas. O aspecto ainda é pouco observado, e por isso mesmo é muito relevante para quem trabalha (ou pensa trabalhar) com o conceito de pesquisa e inovação responsáveis.
“Recomendações para o uso responsável e comunicação de raça e etnia na pesquisa de neuroimagem”, em tradução livre, de Carlos Cardenas-Iniguez, doutor em Psicologia, e Marybel Robledo Gonzalez, doutora em Filosofia, chama a atenção dos cientistas para a necessidade de reverem suas escolhas de pesquisa. Desde o desenho do estudo, até a análise estatística e a comunicação de resultados.
Esse cuidado, em resumo, pode evitar que as informações resultantes reforcem estereótipos de grupos já socialmente marginalizados. Em síntese, o esforço para distanciar a compreensão de dados objetivos a partir de construções mentais preconceituosas pode contribuir para combater estigmas e preconceitos históricos. Além disso, pode construir ambiente de pesquisa mais justo e igualitário, e levar à melhor compreensão das condições de saúde das comunidades.
Construções sociais e neurociência antirracista
O uso responsável e a comunicação de raça e etnia abrangem várias etapas do processo de pesquisa. De fato, isso incentiva o progresso intencional no combate ao racismo estrutural.
O artigo adota uma perspectiva antirracista, abordando a desigualdade racial e seus efeitos na saúde. Cardenas-Iniguez e Gonzalez alertam que, ao coletar dados raciais, os pesquisadores precisam estar cientes das origens históricas e sociais da desigualdade. Aspectos como condições socioeconômicas e educação, por exemplo.
“Raça e etnia são categorias sociais, sem uma base biológica fixa”, esclarecem. Mas, apesar disso, continuam a ser coletados. E em muitos estudos as variáveis raciais são usadas como “proxy”: um dado ou medida que pode ser usado para permitir inferir a variável de interesse. Ou seja, algo que representa a ideia que se quer interpretar.
Por isso recomendam toda cautela. Especialmente em estudos que envolvem saúde pública e neurociência. Em resumo, não considerar o impacto de fatores sociais, políticos e estruturais que influenciam a saúde. Além disso, pode gerar riscos de interpretações incorretas e contribuir para a manutenção de desigualdades que devem ser abordadas nos estudos. Como resultado, seu uso inadequado pode impactar negativamente a ciência.
Pesquisa mais inclusiva e socialmente orientada
Essas práticas buscam evitar que dados raciais sejam interpretados de forma distorcida, prejudicando grupos minoritários. Os autores defendem que essas orientações podem tornar os estudos no campo da neurociência mais inclusivos e mais responsáveis.
Em suma, o objetivo é criar uma ciência que reflita a realidade de maneira justa, combatendo preconceitos e promovendo um avanço no entendimento de condições sociais e raciais como causas de desigualdades de saúde.
Os próprios autores reconhecem haver muito trabalho pela frente. Seja como for, a neurociência precisa aumentar a diversidade nas amostras, melhorar a comunicação sobre o uso de variáveis raciais e avançar em políticas e metodologias que tragam impactos sociais positivos.
Resumo das orientações para uso responsável de dados raciais
– Definir claramente as categorias
Cientistas devem descrever exatamente como coletaram e usaram dados de raça e etnia, incluindo opções oferecidas e categorias usadas. Certamente, é importante registrar limitações e reconhecer lacunas para dar transparência aos estudos.
– Evitar variáveis de controle com base em raça e etnia
Para os pesquisadores, usar raça e etnia como variáveis de controle em modelos estatísticos pode perpetuar estereótipos. Da mesma forma, recomenda-se o uso de variáveis mais diretas, como renda e educação, para abordar fatores socioeconômicos e ambientais.
– Diversidade nas amostras e equipes de pesquisa
Atualmente, amostras de neuroimagem no Reino Unido e em outros países são majoritariamente compostas por participantes brancos. Certamente, ampliar a diversidade das amostras ajuda a tornar os resultados mais aplicáveis a diferentes populações e a enriquecer as descobertas.
– Responsabilização e reflexão crítica
Além disso, os pesquisadores também incentivam a autorreflexão. Nesse sentido, eles recomendam que cientistas, editores e revisores justifiquem a inclusão de dados raciais e que questionem continuamente o impacto do uso desses dados nos resultados de pesquisas.
11 Recomendações em 5 domínios
Domínio | Recomendação | Esclarecimento |
---|---|---|
Conceitualização e Desenho de Estudo | 1. Definir raça e etnia como conceitos sociais. | Explique que a raça e a etnia têm significados sociais e históricos, não biológicos, e incluem forças como políticas e racismo. Considerar a relação com outros fatores sociais, como status social. |
2. Usar uma categorização clara para variáveis raciais. | Documentar informações sociodemográficas detalhadas, descrever todas as categorias, evitando “outros”. Explicar o método de categorização e as limitações do agrupamento. | |
3. Evitar usar raça/etnia como substitutos de forças sociais e ambientais. | Não tratar raça como equivalente a variáveis de status socioeconômico. Medir diretamente variáveis específicas, como renda e localização, em vez de usar raça como proxy para condições sociais. | |
Análise e Implementação | 4. Justificar a inclusão de raça/etnia em modelos estatísticos. | Evitar incluir raça como “controle” ou “variável incômoda” sem justificativa; detalhar o que raça/etnia representam no modelo. Evitar reforçar estigmas associados a minorias. |
5. Não igualar raça e etnia à ancestralidade genética. | Evitar o uso de variáveis de ancestralidade como substituto para raça. Definir claramente diferenças entre etnia, raça e similaridade genética. | |
E tem mais….
Referências
- Recommendations for the responsible use and communication of race and ethnicity in neuroimaging research. Carlos Cardenas-Iniguez e Marybel Robledo Gonzalez, Nature Neuroscience. Volume 27, Abril 2024 | pp. 615–628 . DOI: 10.1038/s41593-024-01608-4
- How to use race and ethnicity data responsibly in neuroscience research. Gina Jiménez, The Transmitter. News / Community, 24 de abril de 2024. DOI: 10.53053/YSIT9055