Neurotecnologias exigem cuidados éticos específicos nas pesquisas cerebrais

Neurotecnologias exigem cuidados éticos específicos
A neuroética é um mapa que pode evitar que a ciência avance rumo ao desconhecido sem considerar os riscos. E esses caminhos desconhecidos ameaçam várias dimensões da individualidade: autonomia, identidade ou privacidade mental - Imagem ilustrativa Freepix.com

É natural questionar por que tecnologias promissoras ainda não se concretizaram. Com tanta inteligência artificial, tudo poderia avançar mais rápido… Talvez. Mas a neurocientista Karen Rommelfanger destaca outro ponto: decodificar o cérebro exige considerar questões éticas, valores e crenças internacionais. Pode não ser só questão de “poder”, mas de “dever”. Isso demanda tempo e mudanças na prática científica.


“Se você recebe um transplante de coração, você ainda é você, certo? Mas, se você tivesse um transplante de cérebro, você ainda seria você?” A pergunta provocativa está na abertura de artigo publicado em 12 de maio de 2025, no portal The Transmitter. A autora defende que a neuroética, uma área que discute as implicações morais da pesquisa cerebral, é essencial para garantir que os avanços sejam úteis, seguros e bem aceitos pela sociedade. Logo, as neurotecnologias exigem cuidados éticos específicos.

Diretora do Instituto de Neuroética, a neurocientista Karen Rommelfanger é pioneira no campo da neuroética. Inovadora, ela defende que avanços em neurociência exigem um tipo específico de compromisso ético. “A neuroética cresce à medida que iniciativas nacionais de pesquisa cerebral se multiplicam”, avalia. 

Isso destaca aspectos do conceito de Pesquisa e Inovação Responsáveis (PIR), adotados pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Neurotecnologia Responsável (NeuroTec-r): antecipar riscos, promover inclusão e sempre agir com a máxima responsabilidade. Essa abordagem é considerada uma das mais eficazes para a proposição de tecnologias alinhadas com as reais expectativas da sociedade e, portanto, mais bem aceitas e necessárias.

Neuroética não é freio: é guia

Neurotecnologias exigem cuidados éticos específicos

A mensagem do artigo, em última instância, é clássica no campo da ética: ainda que os cientistas “possam” (fazer), eles “devem”? 

Com a profusão da neurociência e das neurotecnologias, sendo usadas em escolas, hospitais, empresas e até em tribunais, existe uma enormidade de questionamentos éticos necessários, de natureza prática, tecnológica, filosófica, espiritual e moral para a sociedade. 

Dessa forma, os autores reforçam o chamado da neuroética – lançar luz sobre dilemas morais emergentes em pesquisas que acessam, manipulam ou modelam o funcionamento do cérebro humano. A autora recomenda pensar junto com a sociedade sobre onde queremos que essas tecnologias cheguem. 

“Não se trata de um freio, mas de um guia”, alerta Karen Rommelfanger (foto ao lado, Crédito: Reprodução IONx).

Ou seja, a neuroética é um mapa que pode evitar que a ciência avance rumo ao desconhecido sem considerar os riscos. E esses caminhos desconhecidos ameaçam várias dimensões da individualidade: autonomia, identidade ou privacidade mental. 

Como a ciência do cérebro pode afetar quem somos?

Karen Rommelfanger, chama a atenção também para um outro aspecto importante: estimular, modelar ou decodificar o cérebro não é como tratar o coração. Se você trocar um coração, um rim, ou um fígado, seu comportamento continua sendo o mesmo de sempre (a experiência já é vasta neste sentido!) 

Mas e se fosse possível trocar seu cérebro? Você continuaria sendo você?

A ciência já dispõe de ferramentas para decodificar intenções e pensamentos. Por exemplo, as interfaces neurais que permitem pessoas paralisadas falarem usando sinais elétricos emitidos por seus cérebros. Mas, até onde podemos ir sem violar o espaço mais privado de todos: a mente?

Não apenas, como também modelos de mini-cérebros cultivados em laboratório também estão gerando preocupações. Esses “organóides” replicam atividades neurais semelhantes às de fetos humanos. Mas são tecidos, normalmente feitos a partir de células da pele ou da urina, as quais, por sua vez, são chamadas células-tronco de pluripotência induzida

Mas, será que tecidos também devem ter algum tipo de consideração moral? O que fazer quando famílias recusam doar tecidos por desconforto com essa ideia?

As dúvidas só aumentam e se tornam ainda mais complexas quando esses organoides são conectados a outros, formando “assembloides”, ou quando são implantados em cérebros de animais, influenciando seu comportamento.

A fronteira entre experiência, cognição e consciência fica cada vez mais nebulosa. Por isso, neurotecnologias exigem cuidados éticos específicos nas pesquisas cerebrais.

Perguntas éticas para fazer sobre estudos do cérebro

Essas e outras questões foram propostas, ainda em 2018, em artigo de Karen Rommelfanger e seus colegas especialistas globais no âmbito da International Brain Initiative, e publicadas na revista Neuron de 2018.

Segundo o texto, neurocientistas e filósofos se uniram para encontrar respostas para questões perenes, “engajadas pelo campo da neuroética e relacionadas à compreensão da natureza, do eu e da identidade, a existência e o significado do livre arbítrio, definindo o papel da razão no comportamento humano e muito mais”. 

Pesquisas em neurociência estão sendo desenvolvidas em pelo menos quatro continentes. Cada um deles com visões de mundo, sistemas legais e culturais distintos diversos e por vezes opostos. Esses fatores influenciam não apenas o que pode ser estudado, mas como os riscos devem ser avaliados, quais tecnologias são priorizadas e quais preocupações éticas devem ganhar maior ou menor ênfase.

Então, as neurotecnologias exigem cuidados éticos específicos nas pesquisas cerebrais. Afinal, a neurocientista destaca, não só o cérebro humano é biologicamente especial, como também o é culturalmente. E é nesse contexto que os autores propõem cinco — amplas — perguntas como sendo essenciais para orientar a lida com tensões morais e culturais, desde o início de um projeto de pesquisa.

Cinco perguntas que todo neurocientista deve fazer

Essas perguntas foram desenvolvidas no contexto da International Brain Initiative. Elas são especialmente úteis em cenários de colaboração com outros centros de pesquisa, especialmente os internacionais que encontram desafios de alinhamento ético. E também são necessárias para evitar repetições de erros já cometidos em outras áreas tecnológicas, como a internet e as redes sociais.

  1. Qual é o impacto potencial de um modelo ou interpretação neurocientífica da doença para indivíduos, comunidades e a sociedade?
  • A pesquisa pode, mesmo sem querer, reforçar estigmas sociais ou pessoais? Pode influenciar a maneira como certos grupos sociais são percebidos ou tratados?
  1. Quais são os padrões éticos de coleta de material biológico e dados, e como esses padrões locais se comparam aos de colaborações globais?
    • Estamos protegendo devidamente a privacidade de quem doa dados cerebrais? Como garantir transparência e consentimento em projetos multinacionais?
  2. Qual é o significado moral dos sistemas neurais que estão sendo desenvolvidos nos laboratórios?
    • Que características mínimas um sistema neural precisa ter para merecer consideração moral? A consciência é o único critério? Temos ferramentas para medi-la?
  3. Como intervenções cerebrais podem afetar ou reduzir a autonomia das pessoas?
    • Que garantias podemos oferecer para que usuários mantenham agência sobre suas próprias decisões? Quem se responsabiliza por efeitos adversos de longo prazo?
  4. Em que contextos as inovações neurocientíficas podem ser aplicadas ou implantadas?
    • Existem riscos de uso indevido fora do laboratório? As tecnologias serão acessíveis de forma equitativa ou aprofundarão desigualdades?

A neurotecnologia que interessa é a que escuta

Não adianta correr se o caminho for mal traçado. E não adianta desenvolver tecnologias incríveis que não chegam a quem precisa. Avançar nos estudos da neurociência exige mais do que entusiasmo. Exige responsabilidade, escuta e preparo para lidar com dilemas morais. É preciso promover a inclusão de vozes diversas, desde o início da pesquisa: pacientes, famílias, juristas, comunidades e representantes da sociedade civil.

Sim, as ferramentas já existem. Mas saber usar exige responsabilidade. E responsabilidade, nesse caso, significa também escutar inclusive quem está há anos esperando por respostas que façam sentido na vida real. Neurotecnologias exigem cuidados éticos específicos. Não se esqueça.

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Leia os artigos originais

Why the 21st-century neuroscientist needs to be neuroethically engaged
Karen Rommelfanger. Coluna Perspectives / Human neurotechnology. Publicação: The Transmitter Publicado: 12 de maio de 2025.

Neuroethics Questions to Guide Ethical Research in the International Brain Initiatives
Autores: Global Neuroethics Summit Delegates, liderados por Karen Rommelfanger. Publicação: Neuron, Volume 100, Edição 1, 2018. Publicado: 10 de outubro de 2008.

Texto: Marcus Vinicius dos Santos – jornalista CTMM Medicina UFMG