Pesquisa de cientistas da Europa e dos EUA revela como tumores se conectam a redes neuronais para crescer e resistir a tratamentos. Eles usam sinais elétricos para fazer ligações entre as células. Saber isso abre caminho para que novos estudos busquem combinar neurociência e oncologia para cortar essa “conversa” clandestina.
Os cânceres cerebrais, ou gliomas, assim como outros tumores, são capazes de “sequestrar” redes neuronais para se espalhar. Eles formam sinapses — conexões que permitem a transmissão de sinais elétricos entre células — diretamente com neurônios. Neurônios são células do sistema nervoso responsáveis por conduzir impulsos nervosos.
A descoberta foi descrita no artigo “Cancer research needs neuroscience and neuroscientists”, publicado na revista Nature Neuroscience. Os autores, a professora Michelle Monje, de Stanford e o professor Frank Winkler, da Universidade de Heidelberg, explicam que o sistema nervoso não só regula órgãos saudáveis, mas também é sequestrado por tumores.
O artigo, portanto, destaca a grande necessidade atual de que a abordagem da pesquisa do câncer seja feita a partir de uma perspectiva de neurociência – juntamente com neurocientistas. De acordo com os autores, “os cânceres recriam programas de desenvolvimento do tecido onde surgem, usando a atividade neural a seu favor”. A pesquisa não apenas sugere terapias que interrompem essa conexão mortal, como também as que usam medicamentos já prescritos em neurologia.
Tumores que “ouvem” os neurônios
Os gliomas, cânceres agressivos do cérebro, formam redes conectadas que imitam células nervosas saudáveis. Estudos pré-clínicos, além de análises em amostras humanas, revelaram sinapses diretas entre neurônios e células cancerígenas, mediadas por receptores de glutamato — o aminoácido mais abundante no sistema nervoso central.
Essas conexões, por sua vez, permitem que sinais elétricos ativem o crescimento tumoral, revelando um mecanismo até então desconhecido. Com isso, surge a ideia de que o tumor faz “gato” na rede dos neurônios vizinhos para se comunicar e, consequentemente, crescer.
Os neurônios, por outro lado, liberam proteínas que podem difundir-se ao longo de curtas distâncias e, assim, induzir mudanças em células próximas — fenômeno conhecido como ação parácrina. Além disso, eles estabelecem sinapses que despolarizam as membranas das células cancerosas, o que desencadeia sua proliferação, conforme explica Monje.
Nos casos mais graves, como nos glioblastomas, a atividade elétrica torna-se tão crítica que, segundo os pesquisadores, pacientes com maior “conectividade” entre tumor e cérebro apresentam pior prognóstico. Portanto, compreender esses circuitos é fundamental para futuras estratégias terapêuticas.
Próximos passos da neuro-oncologia
Como o campo da neurociência pode transformar o tratamento do câncer
O desafio agora é mapear, com precisão, como sinais neurais influenciam cada tipo de câncer em suas diferentes fases. A neuro-oncologia é a área médica dedicada ao tratamento dos tumores malignos e benignos que acometem o encéfalo, a medula e os nervos.
O artigo esclarece que um mesmo tipo de nervo pode ajudar um tumor e atrapalhar outro, dependendo do órgão e do estágio. Por isso, os cientistas propõem uma abordagem pan-câncer: estudar padrões comuns entre os diversos tipos de tumores.
Modelos experimentais estão sendo aprimorados com tecnologias de ponta — como opto-genética, microscopia intravital, fotometria de fibra e métodos de rastreamento neural.
Portanto, o objetivo é entender como a ativação ou inibição de certos nervos muda o comportamento dos tumores. Mas há um aviso: o sistema nervoso periférico ainda é um território pouco explorado pela neurociência. Segundo os autores do artigo, este trabalho está começando.
Impacto e aplicações do estudo: promessas e riscos
Interferir nos sinais neurais pode ampliar o sucesso das terapias
A meta final é usar esse conhecimento para criar terapias que interfiram nos sinais entre nervos e tumores. E a descoberta já inspira terapias. Já existem exemplos promissores: medicamentos aprovados para tratamento da enxaqueca (como antagonistas do CGRP) ou para tratar epilepsia (como o medicamento Perampanel) mostraram efeitos antitumorais em testes.
Fora do cérebro, cânceres de pâncreas e próstata invadem nervos, e medicamentos como os beta-bloqueadores têm a capacidade de frear essa “invasão”. “Células imunes são moduladas por neurotransmissores, o que pode limitar a eficácia de imunoterapias”, diz Winkler. Combinar drogas neurológicas com tratamentos convencionais surge como estratégia promissora, com ensaios clínicos em andamento.
Mas há um limite: essas terapias precisam agir sem causar efeitos colaterais graves no sistema nervoso normal. Monitoramento neurológico e psiquiátrico será essencial, tanto em modelos animais quanto em testes com pacientes.
Próximos passos e perspectivas
Desvendando o “cérebro” dos tumores
Os pesquisadores querem mapear como diferentes cânceres se conectam a redes neurais em cada estágio da doença. “Precisamos entender se tumores fora do cérebro também formam sinapses e quais neurotransmissores estão envolvidos”, afirma Monje. Métodos como optogenética e microscopia intravital serão adaptados para estudar nervos periféricos em cânceres.
Parcerias com institutos como o NeuroTec-R, focado em neurotecnologia responsável, são essenciais. A PIR (Pesquisa e Inovação Responsáveis) exige colaboração entre cientistas, sociedade e setor público-privado para garantir que novas terapias sejam seguras e acessíveis.
Neurociência reescreve o combate aos tumores
A neurociência está reescrevendo o futuro da oncologia. Ao decifrar como os cânceres exploram o sistema nervoso, pesquisadores como Monje e Winkler trazem esperança para tratamentos mais precisos.
O sistema nervoso está longe de ser um coadjuvante no câncer. Em muitos casos, ele é protagonista — e talvez seja também a próxima grande aposta terapêutica. Desligar os sinais que alimentam os tumores pode mudar o jogo. Mas para isso, será preciso que neurocientistas e oncologistas joguem juntos, com métodos novos, modelos integrados e muito diálogo entre as disciplinas. Tumor faz “gato” na rede dos neurônios vizinhos para crescer.
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Leia o artigo original
Cancer research needs neuroscience and neuroscientists
Michelle Monje e Frank Winkler. Nature Neuroscience, V. 28, 915–917 (2025)
DOI: [10.1038/s41593-025-01925-2]()
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Texto: Marcus Vinicius dos Santos – jornalista CTMM Medicina UFMG