Dispositivos que leem o cérebro levantam dilemas éticos e legais; Unesco alerta para controvérsias e quer evitar riscos à privacidade 

Dispositivos que leem o cérebro levantam dilemas éticos e legais
Especialistas recomendam que o consentimento para uso de dados do cérebro, para qualquer fim, seja prévio, sempre livre, muito bem informado e reversível a qualquer momento - Imagem ilustrativa de Freepik.com 

Implantes cerebrais que restauram a fala, fones que monitoram o foco mental, algoritmos que preveem escolhas antes mesmo do usuário decidir. A neurotecnologia saiu dos laboratórios e entrou em nossas vidas. Nações Unidas têm liderado ações dirigidas a proteger a privacidade cerebral e convocou especialistas a criarem diretrizes éticas globais.


Consciente de que os dispositivos que leem o cérebro levantam dilemas éticos e legais, a jornalista científica Kristel Tjandra publicou uma notícia na revista Nature, de 12 de junho de 2025. Em resumo o texto chama a atenção para os principais pontos da reunião internacional organizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em Paris, no mês de maio.

Tjandra relata que 24 especialistas se reuniram para avaliar e propor princípios éticos para regular o uso de neurotecnologias. Em outras palavras este documento recomenda que dados neurais sejam tratados com proteção especial e que o consentimento seja sempre “livre, prévio e informado”.

Biólogo e doutor em Fisiologia, Pedro Maldonado, do departamento de neurociência da Universidade do Chile, um dos especialistas presentes, afirmou na notícia da Nature que a ideia é esclarecer como as ações na área podem proteger os direitos humanos. A saber a proposta será analisada no final do ano. Assim sendo, em novembro os representantes dos 194 países-membros da Unesco decidirão se adotam os princípios oficialmente.

Mas o documento não surgiu desse encontro, apenas. Fruto de uma série de debates entre cientistas da área, o motivo é que os neurodados permitem um nível inédito de acesso à individualidade de uma pessoa. “Eles podem inclusive ser usados para manipular processos de tomada de decisão”, afirma  Ana Brian Nougrères, relatora especial da ONU sobre o direito à privacidade.

Neurotecnologia, o avanço do tratamento e o controle

Você já ouviu falar do caso de Ann Johnson? Em 2005, aos 30 anos, Ann Johnson sofreu um derrame, que resultou na síndrome do encarceramento, deixando-a paralisada e incapaz de falar. Quase duas décadas depois, um implante cerebral experimental permitiu que ela voltasse a se comunicar (Notícia relacionada).

Por conseguinte, essa neurotecnologia traduziu seus sinais neurais e possibilitou sua comunicação por um avatar digital. De tal sorte que a partir daí seu caso se tornou um bom exemplo do potencial das novas tecnologias. Mas, potencialmente, há também um risco aí “embutido”.

Segundo publicação em PDF com o resumo das orientações sobre neurotecnologias, produzidas pelo Conselho Consultivo Científico da Unesco, o termo abrange qualquer ferramenta capaz de registrar ou modificar a atividade neural, incluindo tecnologias de neuroimagem, neuromodulação e interfaces cérebro-computador. A Neuralink tem um bom exemplo disso: a empresa já implantou chips cerebrais que permitem controlar computadores com o pensamento.

Esses avanços também incluem sensores não invasivos, como o sensor Caltech, que usa ultrassom para ler intenções motoras. Ou a “Stentrode” Synchron, que acessa o cérebro via vasos sanguíneos. E, portanto, fica mais evidente que o impacto disso vai além da medicina: empresas já exploram o uso de neurodados para aumentar produtividade, vender produtos ou influenciar votos.

Privacidade, desigualdade e controle

Três riscos se destacam, segundo o documento. O primeiro, já falamos: é a privacidade mental. Neurodados revelam mais do que intenções: emoções, crenças e vulnerabilidades. Como afirma Marcello Ienca, da Universidade Técnica de Munique, “devem ser tratados com proteções reforçadas para evitar o vazamento não autorizado de informações mentais”.

O segundo risco é a manipulação de comportamento, especialmente em aplicações de neuromarketing, por exemplo. Uma tecnologia que influencie escolhas, até mesmo sem que o usuário tenha consciência disso. A Unesco recomenda proibir o uso de neurotecnologia para avaliar estudantes, por exemplo, o que poderia reforçar desigualdades educacionais.

O terceiro risco é geopolítico: a neurotecnologia está concentrada no Norte Global. O relatório da ONU alerta que, a longo prazo, há possibilidade de surgir uma sociedade dividida entre indivíduos que podem se beneficiar e outros que não terão acesso a se beneficiar das neurotecnologias avançadas, como implantes cerebrais e interfaces cérebro-computador, que melhoram habilidades cognitivas ou motoras.

Esse cenário pode ampliar desigualdades entre Norte e Sul Globais.Também aponta o perigo de aplicações militares, como soldados com percepção ou reflexos aumentados por implantes, por exemplo.

Neurodados e o direito à privacidade: nova agenda da ONU

As diretrizes da Unesco se fortalecem com os alertas feitos pela relatora especial da ONU sobre o direito à privacidade, Ana Brian Nougrères. Em relatório apresentado ao Conselho de Direitos Humanos em março de 2025, ela propõe reconhecer os neurodados como dados pessoais altamente sensíveis, vinculados ao estado cognitivo e às experiências emocionais dos indivíduos.

Segundo Nougrères, esses dados exigem aplicação do princípio da precaução, responsabilidades ampliadas e medidas rigorosas para garantir confidencialidade e evitar abusos. Seu posicionamento é claro: “Estou preocupada que os neurodados permitam não apenas acessar o que as pessoas pensam, mas também manipular seus cérebros”.

O relatório dela recomenda que os países desenvolvam marcos legais específicos para o uso de neurotecnologias, promovam educação sobre seus riscos e integrem valores éticos no desenho e operação desses sistemas.

O que fazer? O papel da regulação e da participação

A ONU defende que neurodados sejam tratados como dados pessoais ultrassensíveis, sujeitos ao princípio da precaução e a medidas específicas de segurança, sigilo e uso limitado. Em virtude de tal visão, Ana Nougrères propõe quatro caminhos: regulação específica, incorporação do direito à privacidade nas leis nacionais, educação sobre neurodados e boas práticas éticas no setor.

Voltemos ao texto da notícia da Nature. Nita Farahany, especialista da Universidade Duke, avalia que “ter um padrão global ao qual os países se comprometam é extremamente poderoso”. Já Vikram Bhargava, da George Washington University, alerta: o consentimento não é suficiente, pois os dados de um usuário podem revelar informações sobre outras pessoas com padrões neurais semelhantes.

O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Neurotecnologia Responsável (NeuroTec-R) defende princípios semelhantes aos da proposta da Unesco, especialmente o da Participação Inclusiva e Responsável (PIR). Isso significa envolver não apenas cientistas, mas também sociedade civil, setor privado e decisores públicos na regulação dessa nova fronteira.

Conclusão

Dispositivos que leem o cérebro levantam dilemas éticos e legais: riscos à privacidade mental

A primeira tentativa de regular internacionalmente a neurotecnologia está em curso. De tal sorte que ela parte de um consenso raro entre cientistas, éticos e juristas: a mente é o último reduto da liberdade humana. E proteger os dados do cérebro é urgente.

Leia o artigo original

Researchers draw up ethics principles for brain-reading devices
Kristel Tjandra. Nature. Vol. 642, 280–281. Publicado em 12 de junho de 2025
DOI: 10.1038/d41586-025-01679-8

Leia o relatório oficial da ONU

Brief of the Scientific Advisory Board on Neurotechnology: What is Neurotechnology? Why it Matters?
Publicação UNESCO, 2025

Leia também

UN expert calls for regulation of neurotechnologies to protect right to privacy
Ana Brian Nougrères, Relatora Especial da ONU

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Texto: Marcus Vinicius dos Santos – Jornalista CTMM Medicina UFMG